LGBT+

28 de Julho – dia do Orgulho LGBT: uma construção diária

Dia do Orgulho LGBT imagem com 3 pessoas segurando bandeiras sendo a do meio a bandeira trans

Hoje vamos celebrar o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+ de uma maneira diferente. A @martinsanielle, quem comanda a batuta por trás das câmeras e idealizadora da @lublabshop, trouxe pra gente um relato sensível e transparente sobre o caminho que percorreu até se entender como mulher lésbica.

Poderia ser vendido como vitaminas, mas o Orgulho LGBT não é encontrado em formato de cápsulas. Ele é resultado de uma jornada de auto aceitação, de lutas diárias, mas também um dia que marca a celebração de ser fiel a quem somos.

We were born this way

Não lembro a partir de que momento comecei a me dar conta, mas minhas recordações remotas da infância me mostravam um olhar diferente, quase uma fascinação hipnótica por determinadas mulheres. Não sabia, nem entendia o que era aquilo e guardava tudo em segredo.

Assim como boa parte dos LGBTs brasileiros nascidos nos anos 90, cresci numa família religiosa. Meus pais eram evangélicos e frequentavam as igrejas mais tradicionais. Tudo girava em torno disso: de parentes a amigos dos meus pais, até meus colegas de infância tinham que pertencer a esse núcleo. Tínhamos de seguir aquela cartilha.

Minha rotina semanal era estabelecida e deveria ser seguida à risca: ao menos três vezes por semana era necessário frequentar os cultos. O domingo era sagrado. Ai de mim se me atrasasse para a doutrinação na escola dominical na parte da manhã e de noite mais culto. Foram anos a fio ouvindo relatos de ex gays e/ou ex lésbicas que se diziam “curados” por encontrar a libertação dos seus “impulsos mundanos”. Ser LGBT era um pecado capital, quem insistisse em viver assim era uma abominação para a família, amigos e – principalmente – aos olhos de Deus.

Minha mãe também notou cedo alguma coisa diferente em mim. Aversão a brinquedos e “cores de meninas” eram os primeiros indicativos de que algo não estava certo. Nunca me vi como um menino (disforia de gênero nunca foi a questão) e entre as três filhas, eu era a menos feminina.

Outro indicativo era o meu questionamento sobre a liberdade permitida aos garotos, em todos os sentidos desde pequenos. Eu desejava aquilo pra mim. Numa tentativa bastante frustrada de me corrigir e moldar todo e qualquer comportamento desviante meu, ela adotou a linha vigiar e punir. Aprendi que praticamente tudo era pecado e sair da linha significava ficar com enormes vergões nas canelas.

Pra não apanhar, aprendemos rápido a esconder absolutamente tudo, essa é a primeira lição que toda pessoa LGBT assimila da infância. Se pudesse apostar, meu palpite seria que é a partir daí que criamos “O Armário”. Ali, nesse lugar poeirento e menos hostil, como quem esconde jóias, guardamos bem fundo o nosso verdadeiro eu, aquele serzinho que é punido sempre que ousa colocar a cara pra fora.

Cresci o próprio peixe fora d’água. Uma menina de poucas palavras, sentimentos reprimidos e com dificuldades de me socializar. Como reflexo, não sei muito bem até hoje como fazer amigos. Minha mãe se gabava e costumava chamar isso de obediência. E tinha como não obedecer?

O bullying na escola

As dificuldades aumentam na escola, mas o verdadeiro desafio nesse ambiente começa quando chega a adolescência. Maria-macho, Maria-joão, sapatão-nojenta são exemplos mais amenos das ofensas gratuitas que ouvi diariamente durante 7 anos.
Escrever sobre as ofensas, agressões ou as torturas psicológicas diárias que costumavam acontecer da quinta ao terceiro ano do ensino médio daria um livro amargo e desagradável de ler.

Não entendia porque as pessoas me chamavam por aqueles nomes e, se somarmos isso, àquela fascinação na infância por algumas mulheres, algumas coisas ganham novos sentidos.

Sabe aquela admiração distante? Eu queria ficar perto e saber mais sobre quem eram elas, mas a aproximação nunca aconteceu, não tinha coragem e tudo ficou meio platônico.

Nesse momento também chegam os questionamento sobre a nossa sexualidade e, junto com eles, bate a culpa cristã trabalhada por anos na escola dominical, nos relatos de ex-gays/lésbicas. Me perguntava angustiada: “Será que sou gay? Será que aquilo que me xingam é verdade? Será? Se eu for vou para o inferno. Não quero ir para o inferno”.

E com isso entramos na corrida maluca de nos enquadrar em comportamentos e relacionamentos que dizem ser “normais”.

A heterossexualidade compulsória

Somente anos mais tarde descobri o termo heterossexualidade compulsória. Mas sei descrever em que momento ele entrou na minha vida.

Lembro do que senti quando beijei um garoto, que também era da igreja, pela primeira vez. Foi mecânico, desencontrado. A cena foi estranha que virei piada para a colega da igreja que tinha ajudado aquele momento acontecer. Não era essa a sensação descrita nas revistas Capricho.

A única coisa que me apeguei, além da piada que havia me tornado, era a estranha resposta mental “lógica” sobre a minha orientação sexual: não podia ser lésbica, afinal de contas, já tinha beijado um garoto na vida.

Aquela fascinação hipnótica pelas crushs platônicas da escola continuava lá, firme e forte. Se meu eu do futuro voltasse no tempo, exatamente naquele momento, com certeza diria: “Venho do futuro e trago notícias!”

Outros garotos também passaram por aqui, até alguns namorinhos estranhos, contudo, engana-se quem acha que as ofensas pararam após desfilar com eles nos arredores da escola. As ofensas diminuíram, mas nunca pararam. Vai ver por isso que eles tinham vergonha de serem vistos em público comigo.

No último ano do ensino médio arrumei um outro namorado e esse foi o relacionamento mais longo que tive com um homem. Estudamos na mesma universidade e chegamos a morar juntos nesse período.

A Descoberta

A gente tenta a todo custo se esconder, mas os olhares são difíceis de disfarçar e não enganam. Ele também percebeu a forma que eu olhava para algumas mulheres.

A faculdade foi o ambiente seguro para dar vazão a tudo o que estava reprimido dentro do meu armário particular. Era longe da família, igreja, das pessoas do ensino médio.

Ali cabia o que costumam chamar de “a descoberta”.

Num dicionário de termos LGBT, eu definiria da seguinte forma: momento de epifania após experiência sexual com alguém do mesmo gênero, em que tudo passa a fazer sentido na vida. Como um filme de 30 segundos que passa acelerado em retrospectiva conectando todos os pontos.

O primeiro beijo com uma mulher foi o extremo oposto do que aconteceu quando beijei o garoto pela primeira vez. Caso você seja um amante da arte, aquele momento para mim se compara com o que Bernini retrata na sua escultura “O Êxtase de Santa Teresa”. Era como se o céu se abrisse com um feixe de luz ao som de anjos em coro cantando: Ohhhhhhhhh!

Não era bom, era maravilhoso, era macio! Era melhor do que as descrições de beijo daquelas revistas de adolescentes.

Depois da “descoberta”, o relacionamento com o então namorado não durou muito.

Costumo dizer que nenhum LGBT se descobre, em algum momento conseguimos a coragem necessária pra finalmente se entender. A partir daí, não há mais volta, começamos uma jornada de aceitação. O quanto ela dura? Essa é uma resposta individual.

O Orgulho LGBT, por que celebrar?

Orgulho LGBT pessoas numa passeada segurando bandeiras de arco-íris
Pessoas em passeata em uma Parada do Orgulho LGBT.

Ninguém nasce segurando uma bandeirinha do arco-íris enquanto bate cabelo ao som de Born This Way da Lady Gaga. Quem dera fosse fácil assim!

Esse orgulho de ser quem somos é o resultado de uma longa, muitas vezes solitária e dolorosa jornada pessoal de auto aceitação. Nesse caminho, na imensa maioria das vezes, as pedras encontradas serão nossa família, nossa criação, traumas sofridos e imposições da sociedade sobre o que é entendido como normal e esperado de nós. São com essas pedras que tentarão nos empurrar de volta para dentro do “armário”.

Ter orgulho em ser LGBT significa celebrar uma superação pessoal, é ressignificar dentro da nossa mente tudo aquilo que nos marcou no passado e entender que não há problema algum em se relacionar com outra pessoa LGBT e que isso não é e nem deve ser ofensivo. Minha jornada durou 4 anos, desde o primeiro beijo em uma mulher.

Celebramos pois apenas lutar todos os dias também é cansativo. Além da jornada pessoal, encaramos pessoas que tentam nos matar, com violências físicas e com políticas públicas que tentam cercear nossos direitos civis básicos. É comemorar por não ter entrado para a estatística cruel brasileira de ser um dos países que mais mata a população LGBT no mundo.

Hoje eu também celebro as pequenas mudanças que fazemos nas pessoas ao nosso redor e posso dizer, com orgulho, que nessa jornada minha família também mudou e me entende como sou.

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